Intrigas, paixões, discórdias
e polarizações. O que parece descrição de uma peça de William Shakespeare é,
ironicamente, parte dos tons shakespearianos do debate sobre a identidade do
autor de sua obra. Duvidar que o filho de um fabricante de luvas de
Stratford-Upon-Avon é o mesmo gênio por trás de clássicos como Hamlet e Romeu e
Julieta não é novidade. Mas os últimos anos trouxeram uma intensificação de
argumentos. Em 2011, Hollywood embarcou de vez na onda cética com Anônimo. Pelo
argumento do filme, Shakespeare era apenas o testa de ferro do verdadeiro
escritor talentoso, Edward de Vere, o 17o Barão de Oxford. Em abril deste ano,
o contra-ataque veio na forma de Shakespeare Sem Sombra de Dúvida, uma coleção
de ensaios reunindo alguns dos mais renomados estudiosos da obra do bardo na
forma de um detalhado desmanche dos argumentos dos que duvidam da versão
oficial dos fatos.
Assim como Montéquios e
Capuletos, a questão da autoria também se divide em clãs tão passionais como os
dos amantes da tragédia. Stratfordianos são os que defendem o status quo. Os
oxfordianos advogam a causa de De Vere. O cenário se complica porque existem
subdivisões entre os céticos, desde os que acenam com candidatos mais polêmicos
a autor das peças e sonetos, como o poeta Francis Bacon, a acadêmicos que
apenas levantam dúvidas sobre a história oficial - como é o caso de Bill Leahy,
coordenador de um programa de pós-graduação em estudos autorais de Shakespeare
da Universidade de Brunel, em Londres. "Existem razões suficientes para
questionarmos se William Shakespeare de Stratford-Upon-Avon foi capaz de
produzir esse imenso volume de peças e sonetos. Isso por si só é uma razão para
estimularmos o debate e o estudo, cumprir nosso dever como acadêmicos",
afirma o expert em literatura do Período Elizabetano (o reinado de Elizabeth I,
entre 1558 e 1603).
O problema é que colegas de
Leahy não costumam receber com seriedade argumentos questionando a linha
oficial. Stanley Wells, presidente do Shakespeare Birthplace Trust, a ONG que
cuida do legado do poeta em Stratford-Upon-Avon, classifica o ceticismo como
mera teoria conspiratória. Wells guardou mágoa especialmente do grupo de
acadêmicos, atores e intelectuais que assinaram um manifesto online com apoio
às teorias anti-stratfordianas. "Esse questionamento absurdo deixou de ser
obra de amadores para se infiltrar em círculos mais sérios e isso é
preocupante", afirma Wells, autor de vários livros sobre a obra de Shakespeare.
Mas há razão para dúvidas? O
problema é a falta de documentos sobre William Shakespeare. O pouco que se sabe
sobre o homem que nasceu em Stratford é que viveu entre 1564 e 1616 e ganhou
dinheiro trabalhando como ator, sócio do Globe Theatre em Londres e até como
comerciante de grãos. Nenhum de seus manuscritos sobreviveu. O mais importante
documento ligado a ele é o Primeiro Folio, uma antologia impressa de 36 peças
publicadas em 1623 com a assinatura de Shakespeare e o mais antigo retrato do
homem de Stratford.
Poucos
registros
Para alguém tão prolífico
com a pena, a ausência de uma profusão de documentos ajuda a alimentar o
ceticismo. Ainda mais porque um dos poucos registros deixados por William
Shakespeare são seis assinaturas em que seu sobrenome, por sinal, é soletrado
de maneiras diferentes, o que faz com que muitos anti-strat-fordianos usem as
discrepâncias como evidência de que o filho do fabricante de luvas não teria
cacife para produzir tamanho material. "Há estudos mostrando que o autor
das peças e sonetos teria um vocabulário composto de 17 mil a 29 mil palavras.
Me parece um pouco improvável que alguém com origens mais humildes no Período
Elizabetano tivesse capacidade intelectual de produzir tamanha obra",
afirma o jornalista Mark Anderson, autor de Shakespeare by Another Name
("Shakespeare com outro nome", em tradução livre), livro de 2006 que
defende a causa de De Vere.
Oxfordianos têm boas suas
razões para defender o barão. O argumento principal é que só alguém como De
Vere, com enorme trânsito na corte, poderia exibir o conhecimento sobre
bastidores da nobreza que tanto permeia as peças de Shakespeare envolvendo reis
e aristocratas. Mais interessante é o fato de que o barão viveu na mesma Itália
que é palco de alguns dos mais populares textos shakespearianos, como a Verona
de Romeu e Julieta e a cidade de O Mercador de Veneza, funcionando como uma
espécie de embaixador de Elizabeth I.
"Parece-me um nível de
conhecimento fora de comum para alguém que, de acordo com o que há de registros
oficiais, jamais saiu da Inglaterra, enquanto existe extensa evidência da
passagem de De Vere pela Itália. Ele esteve nas dez cidades que Shakespeare
cita em sua obra", diz Anderson. O barão também foi um notório mecenas das
artes, dono de duas companhias teatrais, além de escrever poemas. Mas De Vere
morreu em 1604 e as peças continuaram aparecendo. Uma delas foi A Tempestade,
que de acordo com estudiosos se baseou em um famoso naufrágio de 1609,
envolvendo uma missão de povoamento enviada aos territórios hoje conhecidos
como Estados Unidos.
Céticos também apontam para
a mediocridade do testamento de Shakespeare. Escrito em linguagem nada poética,
o documento sequer menciona livros, poemas ou as 18 peças que ainda não tinham
sido publicadas na época de sua morte. Seu funeral tampouco foi registrado com
grandes demonstrações públicas de emoção, e a primeira homenagem escrita só
veio justamente na capa do Primeiro Folio.
"É essa falta de
conexões do homem com a obra que tem de ser abordada. Todos os autores
importantes contemporâneos de Shakespeare deixaram o que se pode chamar de
trilha de papel. Cristopher Marlowe é um exemplo, embora sua produção tenha
sido bem menor que a do bardo. Também incomoda que um homem tão letrado como
Shakespeare não tenha escrito um grande volume de cartas, ainda mais quando foi
morar em Londres e deixou a família em Stratford", diz Bill Leahy. No
entanto, o próprio Leahy concorda com uma questão crucial. Diferentemente dos
tempos modernos, o papel no século 16 não era um produto barato, apesar de a
invenção da imprensa por Gutemberg ter derrubado em mais de 300 vezes os custos
de produção de um livro. Documentos e afins eram "reciclados", o que
também ajuda a explicar, por exemplo, a ausência de materiais como o histórico
escolar de Shakespeare.
Isso porque para alguns
acadêmicos também há um conflito de classes na discussão. Paul Edmondson, um
dos diretores do Birthplace Trust e que coeditou Shakespeare Sem Sombra de
Dúvida, critica o que vê como preconceito na causa oxfordiana. "O que mais
me incomoda em tudo isso é termos que combater o argumento de que alguém da
classe trabalhadora não poderia ter produzido literatura de alto nível. Isso
não é apenas historicamente incorreto, mas preconceituso", diz Edmondson.
Coautoria
Uma das experts recrutadas
para o livro foi Carol Chillington, pesquisadora da Universidade de Warwick
especializada na história do sistema educacional do Reino Unido. É dela que vem
uma preciosa análise do currículo das escolas secundárias do Período
Elizabetano. De acordo com seus estudos, alunos desses estabelecimentos não só
tinham uma grade de disciplinas que incluía o latim, mas também uma lista de
leitura de obras clássicas que hoje equivaleria a de uma ementa universitária.
Outro trunfo dos
stratfordianos é uma análise feita pelo linguista David Kathman, especialista
em dialetos arcaicos do inglês. Seu veredito é que os textos estão repletos de
regionalismos relacionados a Warwickshire, onde fica Stratford-Upon-Avon.
"Também temos análises de padrão métrico dos versos escritos por De Vere e
por Shakespeare que revelam a impossibilidade de uma mesma pessoa ter escrito
ambos", afirma Edmondson.
A polêmica ajudou a revelar
detalhes interessantes não apenas sobre William Shakespeare, mas também sobre
seus métodos de trabalho. Há um ano, duas acadêmicas da Universidade de Oxford,
Laurie Maguire e Emma Smith, publicaram um estudo em que provaram que
Shakespeare não escreveu sozinho a peça Tudo Está Bem Quando Termina Bem - a
dupla até nomeou o escritor e dramaturgo Thomas Middleton como coautor. Smith
garante que não foi um "a-rá" para os céticos, mas uma mostra de como
entender a questão da autoria.
"O estudo ajuda a
mostrar um quadro em que autores escreviam de modo muito mais colaborativo no
Período Elizabetano do que se pode imaginar hoje. Trabalhavam de uma forma bem
diferente do que imaginamos e romantizamos", afirma Smith. Mais do que
celebridades, escritores do século 16 tinham um perfil mais operário, em que a
quantidade ditava o ritmo. Companhias teatrais recorriam a diversos autores
para chegar ao texto final de peças. E eles não tinham pudor em pegar
emprestado trabalhos alheios. "A noção atual de plágio não se aplica a
eras passadas. A apropriação era muito mais tolerada."
Os dois clãs concordam em um
ponto: o debate não tem data para acabar. "A não ser que alguém encontre
algum documento perdido, não se poderá dizer ao certo, mas nem por isso podemos
deixar de questionar pontos duvidosos da versão oficial dos fatos, mesmo que
firam interesses financeiros", afirma Bill Leahy. Graças a Shakespeare,
Stratford-Upon-Avon recebe 5 milhões de visitantes por ano. Emma Smith, que não
participou do projeto stratfordiano comandado por Edmondson, acredita que o
questionamento tende muito mais à excentricidade do que a ameaça vista pelo
Shakespeare Trust. "A reação exacerbada só serviu de munição para quem
fomenta teorias conspiratórias. O meio acadêmico deveria aceitar que uma figura
tão poderosa quanto William Shakespeare não teria como deixar de ser alvo de
ideias de fantasia."
Quem são os candidatos ao posto de maior poeta e dramaturgo inglês
Cristopher Marlowe
Dramaturgo contemporâneo de
Shakespeare e um dos grandes nomes do período elizabetano. Embora não haja
evidência de que trabalharam juntos, sabe-se que ambos escreviam para as mesmas
companhias teatrais. Há semelhanças de estilo, mas que podem ser explicadas por
Shakespeare tentar adotar uma fórmula de sucesso. O fato de Marlowe ter morrido
em 1593, antes do auge shakespeariano, é um problema.
Edward
de Vere
O 17o Barão de Oxford é um
candidato tão ideal que sua suposta autoria do trabalho de Shakespeare virou
até filme. Aristocrata, viajado e entusiasta das artes, teria escrito uma série
de peças com pseudônimos. Mas muitos dos argumentos a seu favor ainda passam
por pistas dignas de romances de Dan Brown, como o fato de o brasão da família
ter um leão segurando uma lança, algo que evoca shake a spear (balançar uma
lança). Análises métricas de poemas de Oxford com os de Shakespeare, porém, não
revelaram nenhuma afinidade.
Francis
Bacon
O filósofo, cientista e
estadista foi um popular candidato a "real" Shakespeare no século 19,
mas acadêmicos apontam para o fato de que sua vida convencional já era
atribulada e produtiva em demasia para que ainda conseguisse escrever dezenas de
peças.
Will
Stanley
Fonte: Construindo Historia Hoje
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